CLAUDIO S. SAMPAIO

Blues

 - A Muddy Waters

Issaquena, Mississipi, 1913 - Westmont, Illinois, 1983


Quando

no silêncio da tarde quieta e quente de um tempo rubro

o teu canto se ergueu mais alto

do que o canto das outras vozes dispersas 

nas diversas searas do condado de Coahoma  

já o teu coração sabia, Muddy Waters

que o espaço de tua gleba era demais pequeno 

para os labores de teu sonho. Já não te caberia

o condado de Issaquena, de Coahoma

ou o Mississippi. Já a América

(terra dos sonhos), e os palcos do mundo 

te aguardavam

com teu Blues.

 

Despertado pela voz sonora 

de tua guitarra, sabias 

que era chegado o momento de despir-se

de tua camisa macerada pela soma dos outonos e

depor tuas rudes botas proletárias. Com teu perfil de índigo

escalarias o íngreme 

impelido pelos ventos das canções que te chegavam de longe:

desde as memórias da infância 

guardada entre as charnecas lodosas do Mississippi, 

desde os algodoais sombrios da Georgia e do Alabama

desde as capelas segregadas da distante Virgínia

onde ao som dos violões e hinos

velhos e moços, feridos pelos ferros da opressão

cantavam a esperança dos profetas 

e proclamavam  a aurora

de um tempo justo para os negros.

 

Nunca mais

os carriçais veriam os teus dias. Sabias

que era chegado o tempo

de ajustamento; tempo

de íntimo diálogo com a tua guitarra. E era 

tempo, decerto, de saber-se como pássaro

que eras; de ver-se

a voz dispersa na caterva, o grito agrilhoado

do subúrbio. Mas era também tempo

de debruçar-se e ver de perto 

a avesso do sonho, o desengano

estampado no confronto das cores

e nos punhais e cordas do Apartheid. Porquê

tinhas de voar  tão preso ao chão? Era um tempo

de guerras e divisas, e o teu revólver

era a canção. E só com elas chegarias 

ao secreto baluarte, à mesa

dos bardos imortais e à presença

dos aedos celebrados

nos poemas e canções que outros cantam 

além- mar.  Tua canção 

era o teu guia, Moody Waters

pois também com ela chegarias

ao exato instante quando

com teu timbre justo nos dirias

quem eras além da pele,

além da cor,

além da dor,

além do instante em que te vias

solitário com teu tédio 

galgando as nuvens

ferindo a noite

com os faróis de teu garboso Cadillac.

 

De cabelo negro, desenhado num topete

quem te visse saberia do menino que foste, e que 

à margem de um rio

solitário, ergueu sua voz 

e viu seu canto abarcado pela glória 

de um deslumbramento? Quem saberia 

que encanto abria o clarão em teu sorriso 

e acalmava teu frágil coração? Quem 

desvendaria o enigma por traz do homem

defronte do mar 

e do seu canto 

que erguia-se veloz, com suas asas 

por sobre arranha-céus cinzentos de Chicago

para erguer no azul as cores de outros cantos

e desde os quatro cantos convocar 

os violões e vozes para o côro

de tua mística catedral?

 

Hoje

além do Mississipi 

e das janelas suburbanas de Chicago

na aurora fria de Dezembro

os filhos de De  Quincey te celebram, Muddy Waters

e negros e brancos já entoam tua canção 

na alegria fraterna deste tempo de irmãos.

E se alegram em ver 

que desde os mares longínquos do tempo, do sonho e da morte 

tua voz ainda soa

calma e quente como a primavera dos mangues

e ainda revela a sua força em cada Blues cantado

pelos que amavam os Beatles

e os Rolling Stones

 

(Taiobeiras, Segunda feira, 02/12/13)