A dôr que vem de dentro
O que mais doía
Não eram as correias
Nem os pontapés, as chapadas
Ou os carrolaços,
Não doíam os beliscões
Os gritos ou repreensões
Mas sim o saber o quanto lhes importava
Ninguém sabia nem conheciam.
A falta de amor
De um beijo ou uma caricia
Sentir-me sozinho e até abandonado
Provocava em mim uma rebeldia
Que ao fim dava a que me batiam.
Ainda dói
Talvez porque ainda não perdoei
Ainda sinto aquele “fica pra aí”
-não te mexas, não faças nada,
Fica quieto, não fales, não grites, não chores.
Senti a fome
Conhecia-a por dentro
Soube o que era comer ao jantar
Milho branco aos quadradinhos
Numa taça de cevada.
Essa dôr vinha de dentro
Como um frio que sentia bem perto do coração
Mas que não se mexia
Senão que ficava ali,
Doía e puxava do vazio dos pulmões
Como um grito que queria saír
Mas não saía
Era pior que a correia com que me batiam.
E pensava no entanto
Que o mundo lá fora
Também era assim.
As crianças brincavam no meio da rua
Corriam e gritavam
Caíam e choravam mas se levantavam
E eu só vía e ouvia através da minha janela.